A felicidade existe, menos nos dias em que o relógio desperta às cinco da manhã. No primeiro toque já levanto. Sei que se deixar na função soneca, vai tocar até a bateria acabar. A primeira coisa que faço depois de levantar da cama é ligar a televisão. Dou de cara com a Monalisa Perrone, sorrindo, com cara de bem dormida, sem problema, conta positiva, barriga negativa, cabelo impecável e feliz! Evito passar em frente ao espelho porque sei que aqui a situação não está tão favorável. Enquanto me arrumo para tomar banho, penso: Será que alguém consegue ser feliz às cinco da manhã? Tirando a Monalisa, é claro! Certa vez, vi uma entrevista em que ela dizia que dormia às 18h e acordava às duas da manhã para estar às cinco, ao vivo, no Hora Um. Vou dormir quando ela está acordando.
Me apresso, preciso entregar a lista de presença para a Manuela, minha colega de escritório e que está responsável pelo controle de entrada de convidados do evento que vai ser realizado logo mais. É a inauguração de uma loja de roupas femininas de grife, chiquérrima e só tem ‘gente rica demais’ na lista. Ainda bem que me livrei dessa. Fiquei pensando: para levar a lista eu acordei às cinco, imagina uma rica qualquer dessas que precisa de horas para ajeitar o topete com o laquê?
Já são seis horas. Sempre que vou à casa da Manuela, faço o trajeto a pé. É o mesmo para chegar ao escritório. Rotina. Dá uns vinte minutos, às vezes, trinta ou quarenta, é que no caminho tem um petshop, uma escola de criança e uma academia de idosos. Pode não existir gente feliz às cinco da manhã, mas gente que não goste de animais, criança ou velhinhos, é impossível! Não sou muito fã de criança, confesso, mas é um deleite observar a reação dos pais quando os rebentos entram na escola. É uma mistura de orgulho e pressa. “Tchau, meu amor, boa aula”, diz uma mulher loira, bem penteada - É laquê, certeza! Ela finaliza a frase a quase dez metros da porta da escola Balão Mágico.
Do outro lado da rua tem um petshop sem nome, apenas com um letreiro escrito: 24 HORAS, e que, curiosamente, está sempre fechado. Pela janela dá pra ver uns hamsters na gaiola. Eles ficam correndo em uma rodinha. Acho deprimente: será que os roedores continuam por opção ou porque acham que vão correr tanto que alguma coisa vai mudar? Me identifico! A diferença é que não estou em uma gaiola, mas acordo às cinco da manhã para entregar uma maldita lista.
Se Manuela tivesse ido trabalhar ontem ou tivesse uma impressora em casa, eu poderia ter dormindo mais duas horinhas. Só mais duas horinhas.
Quase no meu destino final tem uma academia ao ar livre, dessas que as pessoas podem se exercitar da forma mais errada possível, afinal, ali não existe um instrutor para ajudar – mas também a essa hora, só Monalisa, eu, os trabalhadores, uns pais, crianças que estudam cedo, as ricas que vão ao evento e o senhor Wilson, cumprem a cota dos acordados.
Senhor Wilson é um tiozinho que beira os 80 anos e é usuário cativo da academia da pracinha. Não sei o seu nome, nunca perguntei, mas ele se parece com o personagem do filme ‘Denis, o Pimentinha’. Cabelinho pro lado, bigode e cara de poucos amigos. Na primeira vez que o vi, encarei tanto que ele disse oi. Respondi. No susto!

Faça chuva ou sol, senhor Wilson está sempre aproveitando os aparelhos da academia. O IBGE divulgou uma pesquisa que dizia que os idosos estão se exercitando mais que os jovens. Geração saúde! Na terceira idade também vou me exercitar. Senhor Wilson não sabe usar os aparelhos, mas usa. Dia desses, estava girando em 360º, com os braços para cima, segurando a ponta de um dos engenhos que, acredito eu, seja para alongar e girar apenas em 180 graus de um lado para o outro. Lembrei dos hamsters na rodinha infinita. No dia, pensei em parar e sugerir os 180, mas quando me viu, ele abaixou os braços e acenou sorrindo. Senhor Wilson não tem cara de que é feliz às cinco da manhã, mas quando me vê, sorri. Agora somos amigos.
Chego à casa da Manuela que não atende nos insistentes três toques na campanhia. Pensei que estivesse dormindo, pensei em voltar para casa e pensei em ligar para o Ricardo, o motoboy do escritório, mas decidi insistir mais uma vez. A mãe dela atendeu. Com voz de sono, disse que minha querida colega de trabalho tinha dormido na casa do namorado, do outro lado da cidade. Acordei às cinco e ela nem sequer tinha tido o trabalho de me mandar uma mensagem no WhatsApp. Deixei a lista com a mãe dela e saí... Me senti um hamster correndo na rodinha infinita pra nada. Felicidade não deve mesmo existir, tampouco, às cinco da manhã.
* Conto desenvolvidos para a oficina de Contos e Crônicas. O exercício observar as coisas durante o trajeto do ponto X para o ponto Y e escrever uma crônica sobre.